O Algarve é um lugar onde o mar sempre foi mais que uma simples linha no horizonte. É uma relação profunda e de longa data. Durante anos, os pescadores e a indústria conserveira trouxeram o Atlântico para as mesas do mundo, transformando a sardinha numa verdadeira identidade do povo português e algarvio. Mas a história da indústria conserveira não é apenas uma narrativa de sucesso, também é uma história de luta, adaptação e, muitas vezes, de falta de liberdade.

Na era pré-25 de Abril, a indústria conserveira era um pilar económico e social. Fábricas de conservas espalhavam-se ao longo do país nas zonas costeiras, empregando milhares de pessoas. Os galeões que regressavam carregados de sardinha davam início a uma rotina frenética nas fábricas. Homens e mulheres, especialmente as operárias, passavam horas a processar o peixe, colocando-o em latas que seriam enviadas para o mundo inteiro. A produtividade era alta, mas o contexto em que essa produção acontecia nem sempre era justo ou livre.

Durante o Estado Novo, a liberdade dos conserveiros foi limitada pela centralização do poder nas mãos do regime. O controlo sobre a produção e a exportação era rigoroso e os preços eram definidos por entidades do governo. Os industriais tinham pouca margem para inovar e as tecnologias novas eram restringidas, como a instalação de câmaras de congelamento ou a utilização de técnicas mais modernas. A liberdade, neste caso, não se traduzia apenas na capacidade de negociar, mas na autonomia para evoluir, para se adaptar às mudanças do mercado global.

Durante a Segunda Guerra Mundial, Portugal, como país neutro, usou a sua posição estratégica para apoiar o regime de Salazar. A indústria conserveira tornou-se uma moeda de troca entre as potências em guerra, com as conservas a serem vendidas tanto à Inglaterra como à Alemanha. A necessidade de recursos, como a folha de flandres (usada para fabricar as latas das conservas), fez com que a colaboração entre o governo e a indústria conserveira fosse essencial para o funcionamento do setor. As conservas, em tempos de guerra, tornaram-se não apenas um alimento, mas um simbolismo de resiliência e de uma economia que, apesar de controlada, não parava de funcionar.

Mas o espírito do país nunca desapareceu. A sua ligação ao mar continua viva, agora numa nova forma, mais artesanal e com um olhar inovador. Nos últimos anos, surgiu uma nova geração de conserveiras que, sem perder a essência do que o mar representa para as regiões costeiras, começaram a reinventar a indústria. Utilizando métodos tradicionais de produção e incorporando a qualidade e a frescura dos produtos locais, estas pequenas conserveiras estão a recuperar o que parecia perdido. A técnica do “saber fazer à mão”, em que cada conserva é meticulosamente preparada, tem sido a chave para o sucesso desta nova onda de conservas.

No Algarve, temos hoje uma nova indústria conserveira que se distingue pela inovação, pelo respeito pelo sabor genuíno do peixe e pelo compromisso com a qualidade. As conservas que saem destas novas fábricas não são apenas produtos alimentares, mas estórias, tradições e, principalmente, uma celebração da liberdade. Um símbolo de que, após mais de 50 anos da revolução que nos trouxe a liberdade, a vontade de criar e de fazer bem as coisas continua a florescer. O Algarve, que já foi pioneiro na produção de conservas (a primeira fábrica de conservas do país foi fundada em Vila Real de Santo António em 1853), agora também dá o seu contributo na transformação de uma indústria que se recusa a desaparecer.

No final, o mar continua a ser o nosso maior aliado. E, como sempre, ele desafia-nos a superar as dificuldades e a aprender com os erros do passado. O futuro da indústria conserveira é incerto, mas podemos olhar para o mar com confiança, sabendo que, mesmo nas suas águas imprevisíveis, há sempre espaço para novas oportunidades.

No Mar d’Estórias temos um cantinho designado às conservas que guardam o sabor de Portugal. Não é apenas uma iguaria rápida para os dias mais atarefados, as conservas têm as suas estórias e são parte do legado de um povo que, ao longo dos séculos, soube transformar o mar em alimento, em memória e em resistência.