Se hoje somos o Mar d’Estórias, um espaço comercial que pretende divulgar o melhor da cultura portuguesa; se hoje estamos no século XXI e a modernidade é mestre em meios, técnicas, materiais e tendências; se hoje podemos comunicar aos demais aquilo que fomos e fizemos, mas também aquilo que vai tendo lugar e aquilo que especulamos sobre o futuro; se hoje este edifício ainda é em altura, como outrora; se hoje ainda o percurso é labiríntico; e se hoje ainda o Oceano que se avista do terraço é Atlântico; então hoje somos memória dum passado enaltecido pelo testemunho de gentes antigas, por livros e documentos, por reminiscências e um imaginário capaz de conduzir de imediato à nostálgica saudade.

Em 1932, este era o edifício onde o corpo de Bombeiros Voluntários de Lagos se reorganizava, após vinte e oito anos (1903-1931) que apontam para a desactivação dos seus serviços. Durante 54 anos, as mesmas paredes, os mesmos tectos, as mesmas escadas, o mesmo chão onde caminhamos hoje serviam os “corajosos da sociedade”.

No momento da visita ao espaço Mar d’Estórias, é crucial entender que por detrás das estruturas e dos materiais, há uma história por reconhecer e um segredo por desvendar. Ao olhar para o nicho na fachada exterior (à direita da entrada principal), onde estão agora inscritas informações sobre o projecto e onde pousa um gato de porcelana para lá do envidraçado, é importante que as pessoas saibam reconhecer que ali foi instalada a «primeira cabine telefónica de Lagos», pedido que foi solicitado em 1934 pela Associação dos Bombeiros Voluntários de Lagos.

Onde hoje se podem comer petiscos algarvios, ouvir música portuguesa e desfrutar de um espaço moderno e revivalista (café/bistro), podíamos encontrar uma sala onde os bombeiros guardavam o material, como mangueiras e outros acessórios. Para aceder a essa sala, os bombeiros subiam por um alçapão que ficava onde é hoje a parte da loja ocupada pelo frigorífico dos queijos e enchidos.

Na parte da mezzanine dedicada aos livros e à música, dormia o único quarteleiro que vivia permanentemente no edifício, o Senhor José Vicente Carreiro, espaço que mais tarde passou a ser a camarata onde dormiam o motorista, o socorrista e mais três bombeiros. Onde antes se sonhava de luz apagada, hoje folheiam-se livros sobre outros (grandes) sonhadores.

Ao reproduzirmos a história vai sendo possível cruzar o passado e o presente, compreendendo que ambas as utilizações dizem respeito a um serviço prestado em prol sociedade (a primeira, mais primária e essencial; a segunda, mais moderna e recreativa).

No dia 24 de Julho de 1886, um «pequeno grupo de homens da cidade deu rosto a uma vontade colectiva no anseio de dar melhores condições e de satisfazer determinadas necessidades» da população. É por isso que há 130 anos nasce a Associação dos Bombeiros Voluntários de Lagos e tem início o ajuntamento de um grupo de homens que, pelo menos num aspecto, se diferencia de todos os demais: «enquanto os homens comuns fogem do fogo; estes correm para o fogo», assim o disse o vice-presidente da AHBVL, José Martins Pereira.

O Mar d’Estórias é um projecto comercial, mas é mais do que isso: é um conceito, uma visão e um sentimento. E jamais teria o significado que tem se não fosse o edifício em questão, que serviu primeiramente de igreja do Compromisso Marítimo e, durante 54 anos (1932-1986), foi sede e quartel dos Bombeiros Voluntários de Lagos – aqueles homens e mulheres que, mais do que voluntários de farda que combatem fogos florestais e prestam serviços de socorrismo, salvam vidas, alimentam esperanças e servem uma sociedade que vive na dependência de segurança, bem-estar e conforto.