Somos um povo que lida e respeita o mar como ninguém. Personificamos o Atlântico como sendo um velho amigo, julgamos conhecer todos os seus reboliços de personalidade. Depois, lá vem um vendaval e troca-nos as ideias preconcebidas sobre ele.
Assim é o mar, nunca se deixa conhecer a fundo de tão imprevisível que é. Somos reconhecidos como antigos parentes do mar. Lá fora, no estrageiro, sentem curiosidade sobre esta estreita afinidade. As nossas respostas à curiosidade alheia são enviadas em latas de conserva, para que percebam que quando tratamos bem uma relação, ela dá recompensas.
No Algarve, fomos pioneiros na indústria de conservar com aprumo as compensações do mar. As compensações eram trazidas por aqueles que ficavam noites e dias nas companhas dentro dos galeões a vapor. A eles, aos pescadores, arriscamos renomear a sua função para heróis do mar, a mesma assinalada no hino nacional, merecem essa distinção. Aos heróis do mar, apenas importava que o máximo número de peixe chegasse a bom porto, que é como quem diz, à lota, onde era vendido às grandes indústrias conserveiras presentes ao largo do rio Arade.
Chegaram a ser 23 fábricas a empregar a população que rodeava o Arade. O regresso dos galeões e buques, acionava uma sirene. Era o som do início de mais uma jornada para as operárias. Começava a azáfama do descabeçar, tirar a tripa, lavar, pôr na lata e esterilizar.
Portugal tinha muita lata, e exportava-as para todos os cantos do mundo com porções de coragem e de sardinhas lá dentro. Talvez por conter coragem q.b., eram enviadas em kits de ração de combate para os piores cenários de guerra, como a II Guerra Mundial, ou a guerra de Ultramar. Para os nossos soldados, era um regalo receber um pedacinho de Portugal enlatado, servia como escape ao pior dos panoramas em África.
Portugal tinha mesmo muita lata, hoje continua a ter, mas com menos conserveiras a produzi-las. Ao largo do rio Arade, não sobreviveu nenhuma fábrica. À bolina do tempo, outros países começaram a produzir conservas de baixo preço e o mar deixou de conseguir recompensar com as quantidades necessárias. Assim foram desaparecendo as entidades que desenvolveram a situação económico-social de algumas cidades do Barlavento algarvio.
Vincent constatou todo este passado vitorioso no Museu de Portimão, que se encontra à babuja do rio Arade. Saiu de lá com uma pergunta pertinente, a qual não parou de incomodar todos os outros pensamentos.
Por que carga de água não existe nenhuma fábrica ao largo do rio Arade?
Foi esta a pergunta que levou a que, desde 2015, houvesse uma conserveira artesanal, a Saboreal. A vontade de Vincent contagiou a vontade de Manuel numa conversa casual. Podia não ter surtido efeito, afinal não passavam de umas ideias trocadas entre dois desconhecidos no meio da rua. Mas para comprovar que acasos felizes acontecem, existem 7 variedades de frascos de vidro cheios do melhor peixe e dos melhores legumes. São as mãos e os olhos que selecionam os melhores produtos, vindos de todo o Algarve. Só desta forma conseguem ter a certeza que o interior dos frascos de vidro tem qualidade.
A nova conserveira artesanal, a Saboreal, nasceu com novas ideias, tal como a idade de todos os que nela trabalham. As combinações de sabores são inovadoras, a embalagem em forma de peixe também e a particularidade da conserva ser guardada em vidro confere os verdadeiros sabores a todos os ingredientes. Cada petiscada pode muito bem ser comida à colherada, ou como os sócios desafiam, podemos usá-las com muita criatividade em novas receitas.
A automatização de cada processo não é importante, o que realmente importa é que cada frasco contenha o sabor real de cada produto. Esse é o especial foco desta empresa, que quer vingar paulatinamente por muitos anos. Inicialmente, o primeiro obstáculo a ultrapassar foi o medo. Medo de iniciarem algo completamente novo, fora das suas áreas académicas de conforto. Para que fosse ultrapassada essa barreira, contaram com os ensinamentos de quem melhor sabia sobre o assunto, antigas operárias das conserveiras algarvias. Hoje, já dominam bem a técnica de amanhar o peixe e ainda desenvolveram os seus próprios métodos para o fazer.
O Algarve está a mudar, já não temos apenas praia para oferecer a quem cá vem. Temos experiências que outrora eram o dia a dia do povo. Temos produtos reinventados que nos lembram todo o caminho que percorremos até aos dias de hoje. Temos conservas que nos recordam quem somos, somos os parentes do Atlântico.