Entre a praia e a linha de comboio que nos leva até Lagos, encontra-se uma comunidade de resistentes que trabalhou e sobreviveu para conseguir o seu espaço – falamos do Bairro 25 de Abril, mais conhecido pela comunidade dos “Índios da Meia Praia”.

O Mar d’Estórias conta as aventuras desta gente trabalhadora em busca de melhores condições de vida. De uma população piscatória que rumou do Sotavento Algarvio, mais precisamente de Monte Gordo, a pé e a pedir esmola para comprar o bilhete para a cidade de Lagos, na década de 50: “andamos a pé da Fuseta até Olhão; eu pedia por um lado, as minhas irmãs por outro; o meu pai por outro. Arranjamos dinheiro para comprar a passagem para a Meia Praia.”1

No areal da Meia Praia e nas proximidades da Ria de Alvor, onde o peixe e o marisco eram mais abundantes, famílias inteiras edificaram as suas barracas de colmo e madeira. Os tempos nunca são fáceis para as pessoas que dedicam o seu sustento às vontades do mar, mas com perseverança e trabalho árduo, os “índios” conseguiram, aos poucos, melhorar e crescer em comunidade.

Muitos afirmam que a alcunha de “Índios da Meia Praia” surgiu devido ao aspecto das cabanas de colmo que estas famílias construíram, no entanto, testemunhos asseguram que foi também por despique entre pescadores: “amigos pescadores no mesmo ramo que tinham ciúmes (…) e então começaram a chamar-nos de índios”2. Seja como for, há muito que a conotação pejorativa da alcunha se perdeu para ser substituída pelo orgulho em conseguirem criar raízes no sítio onde sempre desejaram – junto do mar e ao ar livre.

Em 20 anos, as cabanas originais foram todas substituídas por barracas de zinco e platex e, após a Revolução de Abril, foi possível a esta comunidade ter direito a casa digna. Através do projecto SAAL de 1974 (Serviço Ambulatório de Apoio Local3), liderado pelo Arq. José Veloso, o Bairro 25 de Abril tomou forma. Este plano de habituação social tinha como condição o envolvimento de toda a comunidade no processo de construção, e assim foi. O governo cedeu o terreno e o apoio técnico enquanto a população organizou-se por turnos para construir 41 casas de inspiração Algarvia, correspondente ao número de famílias e barracas existentes à data. Enquanto os homens estavam no mar, as mulheres e as crianças carregavam os tijolos, a massa e o cimento, tal como retrata o documentário “Índios da Meia Praia” (1976), de António Cunha Telles e pela música de Zeca Afonso com o mesmo nome.

Hoje em dia, prevalece a ligação à arte da pesca que foi passando de geração em geração e que predomina em 70% da população do bairro. A maioria dos seus habitantes viveu ali toda a vida ou grande parte dela. Já constituíram família e mantêm-se numa comunidade muito unida: “Sou bisavó. Existem quatro gerações a viverem todos juntos e estamos felizes por estarmos aqui”4.

Todos estes anos de história avivam o sentimento de pertença para com este local; para o quotidiano simples desta gente que vive em comunidade: “nasci, aprendi a ler e a escrever, casei e hei-de morrer aqui!” 5. É com pesar que, após todos estes anos, este seja o único projecto SAAL clandestino. O terreno do bairro continua a pertencer ao Domínio Público Marítimo, impossibilitando estes “índios” de vender, arrendar ou deixar de herança uma casa por não ser legalmente sua. Em 2007, foi aprovado um Plano de Urbanização da Meia Praia que visa a demolição do Bairro 25 de Abril e o realojamento da população residente: “Estes moradores tiveram tudo dentro da lei, trabalham, pagaram, como lhes foi exigido. Tiveram apoios do Estado e têm direitos” 6, menciona o Arq. José Veloso.

Estamos perante “uma aldeia típica e antiga”7 habitada por “herdeiros de uma história de resistência” 6 que continua até aos nossos dias. O Mar d’Estórias acredita, tal como o Arq. José Veloso, que os “índios de hoje estão dispostos a ir à luta (…) conscientes de que a sua causa é justa”5.

 

1 Testemunho de Fernando Filipe Romão, residente do Bairro 25 de Abril, em reportagem no programa Linha da Frente: “Quem me dera que a gente tenha”, RTP1, Maio 2018.
2 Citação incluída na Curta Metragem | Documentário – Elogio ao 1/2 (2006), de Pedro Sena Nunes.
3 Projecto que pertencia ao Ministério de Equipamento Social e do Ambiente e do Ministério da Administração Interna.
4 Testemunho de Maria Rita Viegas, de 87 anos, em entrevista com Lena Stang para a Tomorrow Magazine, Maio 2018.
5 Testemunho de Luís Dias, residente do Bairro 25 de Abril, em reportagem no programa Linha da Frente: “Quem me dera que a gente tenha”, RTP1, Maio 2018.
6 Visita de José Veloso à Meia Praia, em Abril de 2017.
7 José Bartolomeu, presidente da Associação de Moradores do Bairro 25 de Abril, em entrevista ao Jornal Público, Abril 2009.
Contributo de algumas ideias retiradas da tese de Daniela Filipa Martins Inês: “O Bairro 25 de Abril da Meia-Praia: representações psicossociais das vivências em comunidade”, Beja 2013.